quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

E o segredo sempre conserva o melhor

Quando quero muito a alguém, jamais revelo seu nome. Seria como renunciar a uma parte dele. Aprendi a amar o segredo. Parece ser a única coisa que pode tornar nossa vida misteriosa ou maravilhosa. A coisa mais vulgar nos parece deliciosa, se alguém a esconde de nós. Quando saio da cidade, não conto aos meus aonde vou. Se o fizesse, perderia todo o meu prazer. Confesso que é um hábito ridículo, mas de certo modo, parece tornar nossa vida mais romântica. Você deve me achar um louco, não?


Basílio (pintor) - O Retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde (1854-1900)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Cena

Certo dia, duas senhoras atravessavam na faixa entre as avenidas Anhanguera e Tocantins no centro de Goiânia. Calor desgraçado, barulho de moto, gente atrapalhando a passagem. O inferno de sempre. Uma das senhoras já bastante idosa caminhava com dificuldades no começo da faixa, o sinal aberto mas faltando pouco pra fechar. A senhora mais jovem que a acompanhava olhava apreensiva para o farol e os carros e ônibus parados, mas já preparados pra arrancada fatal. Segundos de tensão. Até que a mais jovem teve uma ideia, começou a andar mais devagar ainda na tentativa de sensibilizar os motores quentes que roncavam. As duas lentamente davam passo por passo. O sinal ia abrir. Um senhor na calçada incomodado com tanta lentidão gritou para as senhoras:
- Sai da rua!
Uma outra mulher que estava próxima gritou para o senhor:
- O que você tem haver com isso!
O senhor começou a dizer coisas que eu não entendi e começou uma discussão.
As duas senhoras caminhavam os últimos passos limpas e puras enquanto uma multidão assistia a uma briga que se formava na calçada.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Um pouco de João Romão

Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas, recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentavá-se com os restos de comida dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda às hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo que não poderia apoderar-se logo com as unhas.
O Cortiço - Aluísio Azevedo

sábado, 17 de outubro de 2009

As ideias pré-fabricadas em O Menino do Dedo Verde


Se só viemos ao mundo para ser um dia gente grande, logo as ideas pré-fabricadas se alojam facilmente em nossa cabeça, à medida que ela aumenta. Essas ideias, pré-fabricadas há muito tempo, estão todas nos livros. Por isso, se a gente se aplica à leitura ou escuta com atenção os que leram muito, consegue ser bem depressa pessoa importante, igual a todas as outras.
É bom notar que há ideias pré-fabricadas a respeito de qualquer coisa, o que é bastante prático, permitindo-nos passar facilmente de uma para outra.
Mas, quando a gente veio à terra com determinada missão, quando fomos encarregados de executar certa tarefa, as coisas já não são tão fáceis. As ideias pré-fabricadas, que os outros manejam tão bem, recusam-se a ficar em nossa cabeça: entram por um ouvido e saem pelo outro, e vão quebrar-se no chão.
Causamos assim muitas surpresas. Primeiro, aos nossos pais. Depois, a todas as outras pessoas grandes, tão apegadas às suas benditas ideias!


O Menino do Dedo Verde - Maurice Druon (1918-2009)

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Tempo dos assassinos e os nossos dias

[...]

Risos de crianças, discrição dos escravos, austeridade das virgens, horror das faces e objetos daqui, sagrados sede vós pela lembrança desta vigília.
O que havia começado com toda a grosseria, eis que vai acabar em anjos de chama e gelo.
Curta vigília de embriaguez, sagrada! ainda que não seja pela máscara com que nos gratificaste.
Nós te confirmamos, método!
Não nos esquecemos que ontem glorificaste cada uma de nossas idades.
Temos fé no veneno.
Sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias.
Eis o tempo dos Assassinos.

Athur Rimbaud (1854-1891)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Uma das melhores traduções de Baudelaire

Embriagar sempre é preciso. Tudo está nisto: é a única questão. Para não sentir o terrível fardo do Tempo que lhe dilacera os ombros e lhe encurva para a terra. Embriagar-se em cessar lhe é preciso. Mas de quê? De vinho, poesia ou virtude, a bel prazer. Mas embriague-se.

E se algumas vezes, nas escadarias de um palácio, na verde relva de um barranco, na solidão morna de seu quarto, você acordar, com a embriaguez já diminuída ou sumida, pergunte ao relógio, ao vento, à vaga, às estrelas, a tudo que foge, a tudo o que geme, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunte que horas são; e o relógio, o vento, a vaga, a estrela, as aves lhes responderão: "É hora de embriagar-se! Para não ser escravo martirizado do Tempo, embriague-se; sem cessar embriague-se; sem cessar embriague-se". De vinho, poesia ou virtude, a bel prazer.


Embriague-se - Charles Baudelaire (1821-1867)

domingo, 4 de outubro de 2009

Amâncio e um pouco de nós

Há muito tempo ardia de impaciência por tal viagem: pensara nisso todos os dias; fizera cálculos, imaginava futuras felicidades. Queria teatros bufos, ceias ruidosas ao lado de francesas, passeios fora de horas, a carro, pelos arrabaldes. Seu espírito, excessivamente romântico, como o de todo maranhense nessas condições, pedia uma grande cidade, velha, cheia de ruas tenebrosas, cheias de mistérios, de hotéis, de casas de jogo, de lugares suspeitos e de mulheres caprichosas; fidalgas encantadoras e libertinas, capazes de tudo, por um momento de gozo. E Amâncio sentia necessidade de dar começo àquela existência que encontrara nas páginas de mil romances. Todo ele reclamava amores perigosos, segredos de alcova e loucuras de paixão.
Entretanto, o seu tipo franzino, meio imberbe, meio ingênuo, dizia justamente o contrário. Ninguém, contemplando aquele insignificante rosto moreno, um tanto chupado, aqueles pômulos salientes, aqueles olhos negros, de uma vivacidade quase infantil, aquela boca estreita, guarnecida de bons dentes, claros e alinhados, ninguém acreditaria que ali estivesse um sonhador, um sensual, um louco.

Casa de Pensão - Aluísio de Azevedo (1857-1913)